sábado, 20 de agosto de 2016

O SERVO SOFREDOR DE ISAÍAS E O DEBATE COM OS JUDEUS — PARTE 001


jesus em isaias

Aos poucos temos notado o aparecimento de inúmeros sites, artigos e, especialmente vídeos, na Internet defendendo a ideia canhestra que a compreensão dos evangélicos acerca do texto de Isaías 52:13 — 53:12 é fruto da ignorância do texto hebraico e também duma exegese superficial.

Entre os motivos alegados recebe destaque o perene argumento que nossas traduções, bem como toda e qualquer tradução, não refletem com precisão o texto original em hebraico. Mas isso é apenas mais uma grande tolice. Prova disso, é que queremos iniciar esse debate aqui no Blog O Grande Diálogo apresentando um artigo de autoria do Professor Doutor Luciano R. Peterlevitz que é, inclusive, professor do idioma hebraico.

Vamos ao texto do professor Peterlevitz.

O servo sofredor em Isaías 52:13 — 53:12

O servo sofredor em Isaías 52:13 — 53:12

Introdução

Um estudioso alemão chamado Bernhard Duhm, em seu comentário do livro de Isaías publicado em 18921 identificou quatro cânticos em Isaías 40—55, que similarmente apresentam um personagem conhecido como “o Servo do Senhor”:

1º cântico: 42:1—7

2º cântico: 49:1—9

3º cântico: 50:4—9

4º cântico: 52:13 — 53:12.

Certamente o quarto cântico — Isaías 52:13 — 53:12 é o mais conhecido para os cristãos. Isso porque este texto isaiano descreve o sofrimento, a morte e a exaltação do Servo do ETERNO, e o NT reconhecidamente identifica esse Servo com o Messias prometido pelos profetas do Antigo Testamento —

Atos 8:32—33

32 Ora, a passagem da Escritura que estava lendo era esta: Foi levado como ovelha ao matadouro; e, como um cordeiro mudo perante o seu tosquiador, assim ele não abriu a boca.

33 Na sua humilhação, lhe negaram justiça; quem lhe poderá descrever a geração? Porque da terra a sua vida é tirada.

Mateus 8:17

Para que se cumprisse o que fora dito por intermédio do profeta Isaías: Ele mesmo tomou as nossas enfermidades e carregou com as nossas doenças.

Lucas 22:37

Pois vos digo que importa que se cumpra em mim o que está escrito: Ele foi contado com os malfeitores. Porque o que a mim se refere está sendo cumprido.

1 Pedro 2:24

Carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos para os pecados, vivamos para a justiça; por suas chagas, fostes sarados.

Não é sem razão, pois, que o personagem apresentado no quarto cântico é comumente chamado de “Servo Sofredor”.

Porém, a questão da identificação do Servo de ETERNO tem sido bastante disputada entre os comentaristas de Isaías. Por essa razão, o presente artigo primeiramente apresentará as várias opiniões sobre a identidade do Servo, para depois analisar exegeticamente o quarto cântico do Servo. O objetivo deste artigo é mostrar que a leitura cristã não é fruto de uma exegese descuidada do texto isaiano. Na verdade, uma análise das palavras hebraicas desse quarto cântico revela que o texto de Isaías realmente apontava para o Gólgota e para o túmulo vazio.

Interpretações

A identificação do Servo do Senhor tem sido objeto de muito debate na pesquisa bíblica. Três interpretações podem ser destacadas2:

1ª — A interpretação coletiva. O servo seria Israel, como povo ou comunidade que sofrera o exílio babilônico — cf. 41:8—9; 49:3. Muitos intérpretes que aderem a essa perspectiva creem que, nesse quarto cântico, o sofrimento do Servo-Israel é vigário; Israel teria se oferecido como sacrifício de expiação pelos pecados das nações. A identificação do Servo com Israel fundamenta-se principalmente em Isaías 49:3: “Tu és meu servo, és Israel.” O problema para esta interpretação é muito simples: em 49:5, o Servo nitidamente distinguiu-se de Israel. Por isso, 49:3 não alude ao “Israel nacional, posto que no versículo 5 o Servo tem uma missão destinada a Israel. O Servo Messiânico é o Israel ideal através de quem o Senhor será glorificado3.”  Além disto, de acordo com teologia dos profetas clássicos, os exílios sofridos por Israel — tribos do Norte — e Judá — Sul — foram resultado dos seus pecados contra a palavra de ETERNO — ver Oséias 8:13—14; Isaías 1:21—31; etc. Dificilmente algum profeta diria que “Israel” apresentava a perfeição necessária e requerida à vítima do sacrifício expiatório. “Israel” não tinha condições para expiar a culpa das nações, porque ele mesmo era culpado e o seu pecado precisa ser expiado.

2ª — A interpretação individual. Essa interpretação subdivide-se em pelo menos três ramificações: a) O servo seria um personagem escatológico-messiânico; b) O servo representaria algum personagem importante — Moisés, Joaquim, Jeremias ou Zorobabel; c) o servo seria o próprio profeta, o “Deutero-Isaías” — cf. 43:10; 44:26; 50:10; 59:21).

3ª — A interpretação complexiva que une a interpretação coletiva e a individual. Segundo essa interpretação, houve uma evolução conceitual no Deutero-Isaías: teria passado da interpretação do Servo como Israel para a transferência do sofrimento e da morte vigária de um indivíduo (H. H. Rowley). Para outros intérpretes, o profeta teria associado as dores do Servo aos sofrimentos dos exilados na Babilônia. Entretanto, mesmo fazendo essa associação, o quarto cântico anuncia que um personagem futuro reviveria a história trágica dos exilados; tratar-se-ia de uma figura escatológica a ser revelada no futuro do profeta4.

Atualmente a interpretação individual é a mais aceita entre os estudiosos. Citemos algumas evidências que apoiam-na:

1ª — No segundo e no terceiro cânticos o discurso está na primeira pessoa do singular. O Servo fala de suas dúvidas e crises interiores, tal qual Jeremias — Isaías 49:1-6; 50:4-9.

2ª — Em Isaías 42:1—7, o Servo refere-se a sua responsabilidade de pregador, e expõe a sua autocompreensão de profeta. Nessa linha de pensamento, muitos intérpretes identificam o Servo com o profeta Isaías5.  Richard E. Averbeck admite que, em dois dos cânticos, o profeta Isaías se identifica com o Servo — Isaías 49:1—6; 50:4—6 —, no entanto, no quarto cântico, o Servo distingue-se do profeta, e, no contexto de Isaías 40-66 — texto que o profeta Isaías, no século 8 a.C., visionariamente propõe restauração para os judeus exilados na Babilônia no século 6 a.C. —, ele apresenta-se como Aquele que trará Israel à terra prometida6.

Para muitos estudiosos, o Servo seria uma alusão a Ciro, um tipo do Messias escatológico — cf. Isaías 42:5—7; 44:28; 45:1—7, 12—13. Em Isaías 44:28, Ciro é chamado de “ungido”, literalmente “messias”. No entanto, uma observação de Isaltino Gomes parece-nos pertinente: “A função do Servo extrapolaria a de recondução dos exilados. Teria uma dimensão soteriológica, isto é, com um significado de salvação. Ver o cumprimento desta dimensão em Ciro é, sem dúvida, fora de sentido. É restringir o texto no tempo, no espaço e na pessoa7.”

É preciso reconhecer que, no livro de Isaías, o termo hebraico ‘ebed, “servo”, é aplicado a vários personagens8: aos “servos do rei” (Is 37:5, 24); àqueles que adoram o ETERNO (Is 22:20; 56:6; 63:17); aos profetas como porta-vozes de Deus (44:26); a Isaías (20:3); a Davi (37:35). Além disto, Israel também é apresentado como um servo através do qual o plano redentor do ETERNO é executado (Is 41:8—9; 43:10; 44:1, 2, 21; 45:4). Nos quatro cânticos do Servo (especialmente no quarto, que é objeto de análise do presente artigo), por sua vez, o termo ‘ebed não pode ser aplicado nem para algum personagem do Antigo Testamento nem para Israel9.  Na verdade, como o presente artigo demonstrará nas páginas subsequentes, o quarto cântico (Is 52:13 — 53:12) descreve o “Servo do Senhor” realizando uma obra que nenhum outro personagem do Antigo Testamento realizou.

É oportuno notar que a comunidade de Qumram relacionava o Servo a um personagem que futuramente seria levantado pelo ETERNO. Os qumranitas aguardavam um Messias que não somente sofreria e seria humilhado, mas também seria exaltado e glorificado. É o que se lê em um hino que está entre os rolos descobertos no Mar Morto:

[Quem] foi desprezado como [eu? E quem] foi rejeitado [pelos homens] como eu? Quem, como eu, suportou todas as aflições? Quem se compara a mim na resistência do mal? [...] Quem foi considerado desprezível como eu e, no entanto, quem é igual a mim em minha glória10?

Ao que parece, quando os autores do Novo Testamento aplicaram o texto isaiano a Cristo, eles demonstraram que as expectativas que os qumranitas alimentavam em relação ao Messias começaram a se cumprir na Pessoa de Jesus de Nazaré.

Mas será que Isaías 52:13 — 53:12 realmente apresenta a expectativa de que o Servo do ETERNO seria um personagem messiânico, que futuramente seria levantado pelo ETERNO para resgatar o seu povo dos seus pecados? Será que os autores do Novo Testamento, ao aplicarem o quarto cântico a Cristo, não estariam promovendo uma reinterpretação cristã desconectada do sentido original do texto de Isaías? Propomos então uma análise do texto isaiano para averiguar essas questões.

Análise exegética

Os capítulos de Isaías 40—55 apresentam uma palavra de consolo e esperança para o povo de Deus. Essa parte do livro de Isaías pode ser resumida em

Isaías 40:1

Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus.

Do ponto de vista teológico, Deus apresenta-se como Salvador e Resgatador de Israel — Isaías 43:1, 14; 52:3,9. Em Isaías 51:1 a 52:12, texto que precede o quarto cântico (52:13 — 53:12), lemos palavras de consolo para a Sião que foi assolada por nações ímpias. Contudo, em 52:13 — 53:12, Deus não esmaga essas nações que destruíram Judá, mas esmaga o seu próprio Servo, para através Dele propor salvação para todos os transgressores. Portanto, Isaías 52:13 — 53:12 descreve como Deus iria efetuar a salvação prometida não somente em Isaías 51:1 a 52:12, mas em todos os capítulos de Isaías 40—55. 

Quanto à estrutura, Isaías 52:13 — 53:12 é composto por três estrofes, cada qual enfocando um tema relacionado ao Servo:

1ª — 52:13—15: a exaltação do Servo

2ª — 53:1—3: a rejeição do Servo

3ª — 53:4—6: a morte vigária do Servo

4ª — 53:7—9: a submissão do Servo

5ª — 53:10—12: o triunfo do Servo

CONTINUA...


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O texto original poderá ser acessado por meio desse link aqui:


Luciano R. Peterlevitz

Bacharel em Teologia (FTBC e FATEO/UMESP); Mestre e Doutor em Ciências da Religião, na área de Literatura e Religião no Mundo Bíblico, pela Universidade Metodista de São Paulo. Coordenador Acadêmico da Faculdade Teológica Batista de Campinas, onde também leciona Hebraico, Antigo Testamento e Hermenêutica Bíblica nos cursos de Bacharelado em Teologia e Pós-graduação em Exposição Bíblica.


Que Deus abençoe a todos.

Alexandros Meimaridis

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______________________________________________________

1 Bernhard Duhm, Das Buch Jesaja, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1892, 458 p.

2 Richard E. Averbeck, “Christian Interpretations of Isaiah 53”. In: Darrell L. Bock; Mitch Glaser, The Gospel According to Isaiah 53: Encountering the Suffering Servant in Jewish and Christian Theology, Grand Rapids, Kregel Publications, 2012, p. 41-45; Werner H. Schmidt, Introdução ao Antigo Testamento, São Leopoldo, Sinodal, 1994. p. 252-254; E. Sellin; G. Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo, Editora Academia Cristã/Paulus, 2012, p. 534-538.

3 Nota de rodapé da New Internacional Version. 

4 J. Steinmann, O livro da consolação de Israel e os profetas da volta do exílio, São Paulo, Edições Paulinas, p. 193-194.

5 E. Sellin; G. Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, p. 536; Hans-Jürgen Hermisson, “The Fourth Servant Song in the Contexto of Second Isaiah”. In: Bernd Janowski; Peter Stuhlmacher (ed.), The Suffering Servant: Isaiah 53 in Jewish and Christian Sources, Grand Rapids, Eerdmans Publishing, 2004, p. 45-47. 

6 Richard E. Averbeck, “Christian Interpretations of Isaiah 53”, p. 33-60.

7 Isaltino Gomes Coelho Filho, Isaías: o Evangelho do Antigo Testamento, Rio de Janeiro, JUERP, 2001, p. 151.

8 Gerard van Groningen, Revelação messiânica no Antigo Testamento: a origem divina do conceito messiânico e o seu desdobramento progressivo, 2ª edição, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2003, p. 556-557. 

9 Gerard van Groningen, Revelação messiânica no Antigo Testamento, p. 557-589.


10 Israel Knohl, O Messias antes de Jesus, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 2001, p. 28, 31.

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