sábado, 24 de março de 2012

O PECADO, A QUEDA E A GRAÇA DE DEUS – Parte 3



Esse material é um estudo dividido em quatro partes. No final de cada parte você encontrará um link para o estudo seguinte. Não deixe de ler as três partes.

III. Do Pecado e da Soberania Divina.

Outra questão que precisamos tratar aqui tem a ver com a soberania de Deus em relação à existência do pecado. A afirmação tantas vezes repetida de que o homem é a causa secundaria, e Deus é a causa primaria do pecado, não pode ser sustentada biblicamente de maneira aceitável. O autor tem tido a oportunidade de ouvir muitos defensores desta idéias, aos quais considera bem intencionados, mas, profundamente errados, acerca da soberania de Deus. Alguns, sem perceber, estão ensinando que Deus mesmo é responsável pela origem do pecado. Entre as “pérolas” ouvidas estão:

·       Deus desejou que o pecado existisse!

·       Deus é a causa primária e o criador do pecado. Esta afirmação está baseada em uma interpretação equivocada de Isaías 45:7 que diz: “Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o SENHOR, faço todas estas coisas”. Só que a expressão “mal” neste versículo diz respeito, por força do paralelismo, àquilo que se opõe à paz e não ao “mal” em termos absolutos.

Estes tipos de afirmativas são feitas, muitas vezes, em contextos que procuram defender e justificar a soberania de Deus. Independentes disto e por melhor intencionadas que sejam, tais afirmativas são,  em sua essência, blasfêmias. E digo isto porque é realmente muito complicado pedir perdão pelos pecados àquele que consideramos como o responsável primeiro ou maior pelos mesmos. A lógica nos levaria a exigir que Deus é quem deveria nos pedir perdão!

Durante todos estes séculos em que a palavra de Deus tem estado em existência, cristão equilibrados têm rejeitando tanto a noção de que Deus “desejou” que o pecado viesse a existir, como a noção de que pecado é fruto de algum acontecimento fortuito que escapuliu ao controle de Deus. Teólogos que tratam com a devida reverência a palavra de Deus, através da história do povo de Deus, tendem a admitir, no máximo, que Deus “permitiu” o pecado. Mas mesmo esta admissão vem acompanhada dos mais eloqüentes protestos de que: O indicativo mais claro de que existe um relacionamento da vontade soberana de Deus com respeito ao pecado não pode ser percebido na ação que levou Adão a cometer o que chamamos de pecado original e sim, na ação de Deus como demonstrada na cruz, onde por meio da morte de Seu próprio filho, Deus vence o pecado e bane a conseqüência mais terrível do pecado que é a morte. Veja como Isáias expressou esta verdade:

Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos. Ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca. Por juízo opressor foi arrebatado, e de sua linhagem, quem dela cogitou? Porquanto foi cortado da terra dos viventes; por causa da transgressão do meu povo, foi ele ferido.

Designaram-lhe a sepultura com os perversos, mas com o rico esteve na sua morte, posto que nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca. Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do SENHOR prosperará nas suas mãos. Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento, justificará a muitos, porque as iniqüidades deles levará sobre si. Por isso, eu lhe darei muitos como a sua parte, e com os poderosos repartirá ele o despojo, porquanto derramou a sua alma na morte; foi contado com os transgressores; contudo, levou sobre si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu - Isaías 53:5 a 12.

Outras passagens que demonstram com clareza esta verdade são:

·       Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram - Romanos 5:12.

·       Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor - Romanos 6:23.

·       Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus - 2 Coríntios 5:21.

·       O qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai - Gálatas 1:4.

·       Ora, neste caso, seria necessário que ele tivesse sofrido muitas vezes desde a fundação do mundo; agora, porém, ao se cumprirem os tempos, se manifestou uma vez por todas, para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o pecado - Hebreus 9:26.

·       Jesus, porém, tendo oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra de Deus, aguardando, daí em diante, até que os seus inimigos sejam postos por estrado dos seus pés.Hebreus 10:12—13.

A história do pensamento cristão bem como cada uma das análises racionais do pecado, como a análise psicológica do pecado feita pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard[1], de que o pecado pressupõe a si mesmo, demonstram apenas que todas as tentativas de explicar o pecado, acabam por reduzir o mesmo a algo que não produz culpa e, por este motivo, não necessita ser confessado. A Bíblia, ao contrário, é objetiva e direta: o pecado precisa se reconhecido e confessado e não explicado. A própria Bíblia não elabora acerca do surgimento do pecado. Nenhuma palavra é dada acerca de como o pecado surgiu no universo angelical. Por semelhante modo nenhuma palavra nos é dita acerca de como o pecado chegou ao Planeta Terra. Quando se trata de nossos primeiros pais a Bíblia também não traz nenhuma palavra acerca de como o ser humano, criado por Deus, podia pecar.  Como dissemos antes o pecado é tanto imoral quanto irracional. Talvez seja por este motivo que a Bíblia não elabora sobre a origem do mesmo. O fato é de que não existe nenhuma justificativa lógica para a prática de atos que sejam qualificados como irracionais. Se existe alguma razão moral para a prática do pecado, ou alguma razão lógica para justificar a realidade do pecado, a Bíblia não diz nada a este respeito.

IV. A Queda e o Pecado como História.

A queda dos seres humanos, todos representados federativamente em Adão, no pecado, é considerada pela Bíblia como algo fundamentalmente histórico. Isto faz com que o próprio pecado, cometido pelo homem, seja também um evento histórico. Assim podemos dizer que uma das características do pecado é que ele está sempre relacionado com algum evento, tal como, por exemplo, a queda de nossos primeiros pais. Este é um dos motivos porque o pecado não pode acontecer dentro das atividades do Deus triuno, já que a tri-unidade opera em uma dimensão onde o tempo é irrelevante – ver 2 Pedro 3:8. O pecado em si, não possui uma dimensão de eternidade. Ele está, no nosso caso, restrito ao tempo e ao espaço. Já a ofensa causada pelo pecado, esta sim tem uma dimensão eterna, porque ofende, em última instância, ao Deus Eterno – ver Salmos 51:4. Por outro lado, todas as nossas atividade, inclusive o que pensamos, acontecem dentro da dimensão do tempo e do espaço. Exatamente por esta restrição, tudo o que fazemos, inclusive os pecados que cometemos, não são nem necessários nem eternos. A realidade do pecado está sujeita à sua existência temporal. O pecado acontece no tempo. No caso da transgressão de Adão, ela aconteceu uma vez, naquele momento e naquela circunstância histórica. 

Voltemos então a falar do relacionamento do pecado com os eventos registrados nos três primeiros capítulos do Gênesis. Quando lemos os capítulos iniciais do livro do Gênesis não é difícil perceber que o pecado não é um item da criação, daquilo que foi criado, nem mesmo uma qualidade desta mesma criação. Especulações que alegam que o pecado é uma qualidade da criação de Deus e que será, em algum tempo futuro, transformado em algo bom, não levam em conta esta realidade que acabamos de mencionar. Pois ao terminar a criação, no sexto dia, Deus a estampou com as seguintes palavras: “Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, o sexto dia - Gênesis 1:31”. O pecado, por sua vez, é uma contradição a todas as coisas criadas. No caso do primeiro pecado cometido, o mesmo demonstrou todo seu potencial, como um verdadeiro trator, destruidor de todas as coisas boas. A narrativa bíblica da queda do homem é marcada por um complexo de contradições entre o homem e Deus, entre o homem e sua mulher e entre o homem e a natureza, que aparecem, todas, imediatamente após a queda. Isso tudo para não falar das contradições que o próprio ser passa a sofrer.

A alternativa filosófica que procura substituir a narrativa bíblica da queda por um sistema evolucionário despreza, de maneira visceral, o fato de que tudo o que Deus fez era bom. Quando queremos acreditar que o homem está evoluindo, que está melhorando e se aperfeiçoando com o passar do tempo, além de negarmos a criação boa de Deus, negamos também aquilo que Deus conquista, na própria história humana, mediante a vida e a morte vicária de Jesus Cristo, que é a nossa redenção.

A existência do pecado, com suas conseqüentes misérias e destruição, tem provocado a reação de inúmeros pensadores, cristãos e não cristãos, que buscam encontrar uma explicação que possa ser satisfatória, mas que até o tempo presente, tem se constituído em uma grande frustração. Juntamente com o tsunami do final de 2005, não pereceram somente centenas de milhares de pessoas. Naufragaram também inúmeros teólogos e pastores que por não poderem compreender como uma tragédia daquela dimensão poderia ter acontecido, acabaram preferindo abandonar a fé, como certeza daquilo que está revelado, para tornarem-se, por assim dizer, parte da grande maioria das pessoas que vivem neste planeta e que não têm certeza de nada. A certeza ficou restrita ao que “eu” posso fazer, já que para estes, Deus é incapaz ou não pode fazer nada. Precisamos ter muita humildade, como seres humanos frágeis e finitos, para aceitarmos que tanto a origem do pecado quanto a sua continuidade na vida de cada ser humano, bem como as devastadoras conseqüências advindas da prática persistente do mesmo, são, e continuam sendo, um enigma para o qual não existe defesa, nem teodicéa[2] que o justifique.

V. O Pecado Original.

Em primeiro lugar devemos deixar bem claro que a expressão “pecado original” não é uma expressão bíblica. Trata-se, exclusivamente, de um conceito teológico e, como tal, não lança nenhuma luz sobre a origem do pecado. Durante os séculos, os teólogos e pensadores cristãos têm desenvolvido os seguintes aspectos deste conceito teológico. O pecado original:

·       Não se refere ao primeiro pecado cometido entre todos os pecados.

·       Também não se refere ao primeiro pecado cometido na história da humanidade.

·       Refere-se exclusivamente ao primeiro pecado cometido por Adão e, somente a este primeiro pecado e a nenhum outro pecado, posteriormente cometido por Adão.

Na seqüência cronológica da história da humanidade, Eva foi a primeira a transgredir; não obstante, o pecado somente entrou no mundo através da transgressão posterior de Adão - posterior ao pecado cometido por Eva – ver Romanos 5:12. Adão, provavelmente, por ter sido o primeiro ser humano criado – ver 1 Timóteo 2:13 - detinha poderes federativos sobre todos aqueles que viriam descender dele. Assim, por ser Adão nosso representante federativo, o pecado original é o primeiro pecado cometido por Adão, que se tornou por sua vez, a origem de todos os outros pecados, inclusive os outros pecados cometidos pelo próprio Adão. E é por causa do poder deste primeiro pecado de Adão, que a morte passou a todos os homens, mesmo para aqueles que não pecaram a semelhança de Adão – ver Romanos 5:14. Neste contexto, é da maior importância destacarmos, mais uma vez que: quando Deus deu o mandamento para não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, Eva ainda não havia sido criada – ver Gênesis 2:15 – 18.

VI. Pecado e Depravação Total.

O autor é reformado por convicção. Por este motivo é muitas vezes chamado para explicar os assim chamados “cinco pontos do calvinismo”. Isto se deve ao fato de que a maioria avassaladora dos irmãos no Brasil, adotam posições variadas concernentes à doutrina da salvação. Estas posições variam desde o pelagianismo, passando pelo semi-pelagianismo até chegar às argumentações feitas pelo teólogo holandês James Arminius e que recebem, por este motivo, o nome de “arminianismo”. Um dos “cinco pontos do calvinismo” que, diga-se de passagem, não foram desenvolvidos diretamente por Calvino e sim por seus seguidores, tem a ver com a questão da corrupção moral e espiritual causada pela transgressão de Adão e que acabou atingindo a todos nós. Esta corrupção moral e espiritual recebe a designação de “depravação total” na teologia reformada.
 
Da mesma maneira que acontece com a expressão “pecado original”, a expressão “depravação total” também não é bíblica. Mas a leitura da Bíblia nos ensina que o nível de corrupção alcançado pelos seres humanos é imenso. A Bíblia usa inúmeros adjetivos para tentar descrever a condição em que se encontram os seres humanos caídos. Entre estes adjetivos nós podemos citar: desviados, perdidos, fracos, ímpios, extraviados, inúteis e pecadores; incapazes de fazer o bem, mortos em delitos e pecados, transgressores, homens naturais incapazes de aceitar e de entender a revelação de Deus; néscios, desobedientes, desgarrados, escravos de toda sorte de paixões e prazeres, vivendo em malícia e inveja, odiosos e odiando-se uns aos outros; infiéis, adúlteros, traidores, assassinos, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus; cheios de toda injustiça, malícia, avareza e maldade; possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo difamadores, caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais, insensatos, pérfidos, sem afeição natural e sem misericórdia. Bem, a lista é longa, mas não é exaustiva[3]! E tudo isto e muito mais teve início naquela descrição que encontramos em Gênesis 3. Os adjetivos que mencionamos acima nos dão uma idéia daquilo que o pecado fez com o ser humano em termos morais e espirituais. Tentar definir o pecado é algo muito complexo devido a todas as implicações envolvidas. Mas, mesmo assim, podemos dizer que: o pecado é um ato destrutivo de auto-afirmação baseado em orgulho, falta de amor, rebeldia, falta de gratidão, primeiro contra Deus, mas simultaneamente contra o próprio indivíduo e contra todas as outras formas de realidade criadas.

Por meio daquele ato inicial de pecado, Adão quebrou:

·       Seu relacionamento com Deus.

·       Seu relacionamento com Eva.

·       Seu relacionamento com a natureza.

·       Além de se lançar em um verdadeiro cipoal de contradições internas.

Destes quatros relacionamentos dependiam, em diferentes graus, tanto sua vida como seu bem estar.

Mas o pecado de Adão representa algo mais. Ele também se constitui em uma declaração de auto-suficiência. A impressão que temos é que Adão, na esperança de tornar-se como Deus, desejava seguir seu caminho sozinho. Seguir sem a companhia do Deus que o havia formado do pó da terra. Para uma criatura tão arrogante e auto-suficiente as palavras do criador são mais do que apropriadas: “tu és pó e ao pó tornarás”.

·       Por meio daquele primeiro pecado de Adão tudo é alienado:

·       Adão e Eva se escondem um do outro, por meio da tentativa de costurar roupas para si mesmos.

·       Adão se esconde de Deus.

·       Adão põe a culpa em Deus e em Eva.

·       Eva culpa a serpente.

·       E o próprio ser se torna alienado de si mesmo - ver Gênesis 3:7—13.

Toda esta alienação, especialmente de si mesmo, produz uma depravação correspondente, que priva o homem de todas aquelas qualidades morais e espirituais que constituem seu autêntico “ser”.

O resultado desta depravação é que o homem perde a capacidade de auto-realização e torna-se, por este motivo, o seu pior inimigo. Nas palavras do velho professor do Fuller Theological Seminary, James Daane:

O “ser” está completamente depravado, pois não existe nada pior nem mais destrutivo que ele possa fazer contra Deus, seu semelhantes, seu mundo e contra si mesmo do que pecar. Desta maneira, a morte e o inferno não são mais do que conseqüências das exageradas qualidades de culpa do próprio pecado. O pecado original, e todos os outros pecados subseqüentes meramente enfatizam esta realidade, de que o homem está completamente alienado de si mesmo, de Deus, de seus semelhantes e da natureza. E mais, neste estado de alienação o homem é incapaz de instaurar relações autênticas como existiam originalmente. O momento histórico que mostra de maneira mais contundente esta alienação, é quando os seres humanos, na cruz do calvário, matam Aquele em quem toda a realidade divina e criada subsiste – ver Colossenses 1:15 – 16 e Atos 3:15.

Desta maneira, o pecado original como aquele ato que quebra todos os relacionamentos criados por Deus, não é meramente moral, intelectual ou afetivo, mas algo muito mais profundo do que tudo isto. O pecado é essencialmente relacional. Como Davi disse: “Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mal perante os teus olhos” - Salmos 51:4. É esta referência divina que constitui a essência do pecado original e através desta mesma referência o pecado se torna pecado contra o próprio homem, contra seus semelhantes e contra a natureza. A natureza do pecado é completamente destruidora. É o pecado que introduz aquelas realidades que a Bíblia descreve como sendo “morte” e “ira de Deus” ver - Efésios 2:1 e 5:1 – 12.

Que o pecado torna o homem completamente depravado não pode ser observado exclusivamente pela história da humanidade. Apesar do fato de que a história da humanidade está repleta de atos pecaminosos, um reconhecimento verdadeiro do pecado, como algo distinto de erros humanos, ignorância, tolices ou fragilidade, não ocorre dentro do campo da observação nem da experiência humana. Não existe uma estrada que nos conduza da experiência do pecado ao conhecimento daquilo que o pecado é. A dimensão religiosa do pecado como um ato primariamente contra Deus, só pode ser percebida pela revelação divina. O comportamento moral do homem é normalmente melhor do que a depravação total nos faz esperar. Esta ambigüidade, entre o esperado e o real, é fruto da ação permanente e graciosa de Deus sobre a humanidade caída, e isto constitui outra verdade que só pode ser reconhecida mediante revelação. Que cada e todo pecado cometido contra o próximo, contra o meio ambiente, é também um pecado contra Deus só pode ser entendido desta maneira se for revelado por Deus. Da mesma maneira, é somente mediante a revelação divina que podemos saber que a única forma de reconstruir, de maneira correta, os relacionamentos com Deus, com o próximo e com o meio ambiente é mediante a graça da regeneração oferecida por Deus em Cristo[4].

VII – O Pecado Humano e a Graça de Deus.

De acordo com 1 João 3:4 “pecado é a transgressão da Lei”. E para que servia a Lei de Deus senão para, como um aio, nos “conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé - Gálatas 3:24”. Por este motivo, o pecado além de ser uma transgressão da Lei é também um ato constante contra a bondade e a graça de Deus. Como tal, o pecado assume uma dimensão que vai muito além do indivíduo. Ele se torna em algo social e coletivo.

A graça de Deus é uma manifestação do desejo que o criador possui de manter comunhão com o ser humano. A primeira pergunta do catecismo de Westminster em seu original inglês é:

                    Q. What is the chief end of man? – Qual é o propósito supremo do homem?

E a resposta é:

                    A. Man’s chief end is to glorify God, and to enjoy him forever. – O propósito supremo do                  homem é glorificar a Deus e desfrutá-Lo para sempre.

Por este motivo o maior de todos os mandamentos é: Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força - Deuteronômio 6:5.

Mas Deus não fez o homem para que ele ficasse sozinho, pois a providência divina diz: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea – ver Gênesis 2:18. Além disso, Deus ordenou ao primeiro casal o seguinte: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra – ver Gênesis 1:28.

E por estes motivos é que o segundo grande mandamento, semelhante ao primeiro citado acima é: “amarás o teu próximo como a ti mesmo – ver Levítico 19:18.

Estes dois mandamentos nos ensinam acerca da dimensão do aspecto social da graça de Deus. Só podemos verdadeiramente amar a Deus, quando amamos nosso próximo – ver 1 João 4:7 – 8.

O pecado de Adão, como um ato de rebelião e auto-suficiência contra a graça de Deus destrói, inclusive, o desejo gracioso de Deus de que os homens vivam em comunidade. Nesta capacidade o pecado assume uma identidade que é, em sua natureza, completamente anti-social. O pecado assume também uma dimensão que vai muito além do indivíduo, pois pode ser cometido coletivamente, por grupos sociais e o que é pior, pode se personificar nas estruturas sociais. Um país pode e geralmente peca tanto quanto o indivíduo. Existem pecados nacionais e países inteiros são chamados ao arrependimento e mudança de vida nas páginas da Bíblia como encontramos, por exemplo, no livro de Jonas, onde Deus envia o profeta para anunciar um desastre – ver Jonas 3:4 - mas em função do arrependimento dos Ninivitas, Deus decide não levar adiante a destruição anunciada. De maneira semelhante a igreja pode pecar e ser ordenada a se arrepender e mudar de atitude, mas temos que admitir que muito raramente as igrejas fazem aquilo que exigem de seus membros. Existe muito abuso espiritual cometido pelas lideranças da igreja chamadas cristãs[5].

O caráter comunitário ou coletivo do pecado deve nos ajudar a entender os aspectos comunitários ou coletivos da graça de Deus. Deve também nos ajudar a entender que a justiça, tão reclamada pelos profetas do Antigo Testamento e também pelo Senhor Jesus e seus apóstolos no Novo Testamento, não é um conceito individual e sim coletivo. A Bíblia chama de injustiça todos os assaltos do homem pecaminoso contra o seu semelhante. Estes assaltos possuem muitas e variadas formas. Quando o autor estadunidense Walter Wink visitou a América Latina, passando pela Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Nicarágua e Peru, fez o seguinte comentário: “os males que encontramos eram tão monolíticos, tão massivamente apoiados pelo nosso governo estadunidense e, em alguns casos, tão firmemente ancorados numa longa história de tirania, que tivemos a impressão de que não havia a menor chance de que qualquer coisa poderia ser feita para mudar a situação”[6].

Nossas doutrinas cristãs, especialmente estas que estamos praticando nestes últimos 200 anos, têm insistido em uma mudança de paradigma. A própria comunidade cristã deixou de ser importante para se concentrar no indivíduo. Começando com a ênfase na salvação do indivíduo durante o século XIX e, culminando com o estrelismo de pregadores e cantores dos tempos presentes, tudo tem contribuído para dissolver a comunidade e entronizar o indivíduo como o objeto especial da graça de Deus. Mas a graça de Deus não existe para o indivíduo. Ela existe para a comunidade. O exemplo que o autor gostaria de sugerir para ilustrar este ponto é a oração. O que poderia ser mais individual do que a oração? Afinal, o próprio Senhor Jesus recomendou que o indivíduo, se recolhesse ao seu quarto e fizesse suas orações. Mas o ensino de Jesus não tinha tanto a ver com orações individuais como com orações modestas, sem pompa e sem falsas aparências. Quando o Senhor ensinou seus discípulos a orar, ele disse: note os conceitos de comunidade embutidos na oração:

·       Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome;

·       venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu;

·       o pão nosso de cada dia dá-nos hoje;

·       e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores;

·       e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém!

A mesma verdade foi expressa em outra passagem do sermão do monte em Mateus 5:23 – 24 onde lemos:

·       Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta.

Nós só podemos orar a Deus como Pai, pedir pelo pão diário, pedir perdão por nossos pecados e livramento do maligno se usarmos pronomes plurais como vós e nós. Só podemos trazer nossas ofertas a Deus se estivermos em paz com nosso próximo. Só podemos adorar a Deus se fizermos justiça ao nosso próximo. É bobagem pensar que Deus vai nos aceitar quando temos ciência de que ofendemos alguém. Este é o maior motivo porque nossas orações não são ouvidas e nem nossa adoração é aceita por Deus. É nossa responsabilidade buscarmos viver em paz com todas as pessoas – ver Romanos 12:18.

A distinção ética tão comum em nossos dias entre o individual e o social está realmente arraigada em uma compreensão equivocada acerca do pecado. O autor entende e aceita que todo pecado, seja ele cometido por um indivíduo ou por uma coletividade, seja uma nação ou uma igreja, é de fato pessoal. Nesta mesma linha podemos dizer que todas as práticas de amor e de fazer aquilo que é certo, também podem ser definidas como sendo algo pessoal. Note que estou me referindo a atos em si e não a conceitos teóricos. Biblicamente falando, não existe nada que possamos chamar de ética pessoal individual, uma ética que diz respeito ou é peculiar a uma só pessoa, da mesma maneira que não existe graça de Deus individual nem justiça individual. Este é o motivo principal porque Jesus trombou frontalmente com os fariseus e outros grupos que existiam nos Seus dias. Os fariseus eram e, continuam sendo, através dos seus imitadores modernos, aqueles que acreditavam que podiam e seriam salvos individualmente e por seus próprios méritos. Para eles não havia salvação coletiva para o povo de Israel. O indivíduo tinha que salvar-se a si mesmo. Não admira que Jesus os tenha confrontado com palavras tão duras vez após vez. Nos nossos dias estamos fazendo exatamente as mesmas coisas que os fariseus fizeram quando assumimos uma compreensão legalista da Lei de Deus, sem fazer uma referência ao caráter social da graça de Deus. Quando agimos assim, acabamos por destruir por completo as idéias Bíblicas de graça, amor e justiça, bem como os ensinos Bíblicos de que o pecado original de Adão é o pecado de todas as pessoas e o ato de justiça praticado por Jesus pode se transformar em um ato de justiça de todas as pessoas. Quão absurdamente longe dos verdadeiros ensinamentos das Escrituras Sagradas o pecado pode nos levar, creio que ainda estamos por descobrir.

A Quarta Parte desse estudo poderá ser alcançada através desse link:

http://ograndedialogo.blogspot.com.br/2012/03/o-pecado-queda-e-graca-de-deus-parte-4.html

Que Deus abençoe a todos.

Alexandros Meimaridis

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Desde já agradecemos a todos.

NOTAS


[1] O autor está consciente de que em tempos recentes, inúmeros autores têm revisitado os escritos de Søren Kierkegaard e que este trabalho tem resultado em uma avaliação mais positiva de seus escritos. Para aqueles interessados em conhecer melhor a obra de Kierkegaard, pelo menos em forma de introdução, o autor sugere as seguintes obras: 1) Paixão pelo Paradoxo – uma introdução à Kierkegaard, de Ricardo Quadros Gouvêa e 2) Provocations – Spiritual Writings of Kierkegaard – compilados e editados por Charles E. Moore e publicado pela Bruderhof Foundation Inc em 2002.  

[2]  Termo cunhado pelo filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz - 1646 – 1716 a.D., para designar a doutrina que procura conciliar a bondade e onipotência divinas com a existência do mal no mundo. 

[3] Listas contendo as coisas terríveis que os seres humanos são capazes de fazer podem ser encontradas, por exemplo, em: Marcos 7:21 – 22; Romanos 1:28 – 32; 1 Coríntios 6:9 – 10; Gálatas 5:19 – 21; Efésios 4:31; 5:3 – 6; Colossenses 3:5; e 2 Timóteo 3:1 – 6. E isto para ficarmos no Novo Testamento somente.

[4] Daane, James. “Total Depravity” in The Zondervan Pictorial Encyclopaedia of The Bible. Zondervan Publishing House, Grand Rapids, 1978. Na citação constam referências bíblicas supridas pelo autor.

[5]  Para um tratamento completo da manifestação do pecado na instituições, sejam sociais, políticas, militares, econômicas e etc, o autor recomenda a leitura da trilogia escrita por Walter Wink e publicada pela Fortress Press da Philadelphia entre 1984 e 1992. Os três volumes são: 1. Naming the Powers; 2. Unmasking the Powers e; 3. Engaging the Powers.

[6]  Wink, Walter. Naming the Powers. Fortress Press, Philadelphia, 1984.

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